segunda-feira, 15 de julho de 2013

CRISE



“Ó, menino, venha cá um bocado, faça o favor!” – chamou-me uma velha senhora, ao se levantar de um banco da praça pela qual eu passava para chegar até a paragem do autocarro. Aparentemente, era uma mendiga: despenteada, com um carrinho nas mãos no qual havia uma caixa, e com um sofrido cobertor (com estampa da bandeira de Portugal) nas costas. Sem saber o porquê – já que nessas situações, como a maior parte das pessoas, a minha atitude é sempre me desvencilhar desses tipos – cheguei próximo à senhora. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não me faz companhia? Eu estava ali sentada e até agora não tinha tido nenhum problema. Mas agora passou um homem estranho, tenho medo!”. Ela andava com muita dificuldade, era mesmo um martírio dar três ou quatro passos. “Ó, menino, tu sabes onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré? Vou até Cascais, na casa de uma madrinha minha, mas não consigo andar até o Cais”. Ela não me pediu dinheiro. Os autocarros para o Cais de Sodré passavam ali mesmo, naquela avenida da praça, mas de que adiantava ela pegá-lo àquele horário? Eram quase três horas da manhã, fazia frio, ventava, as pessoas estavam a passar pela praça uma vez que todos os bares do Bairro Alto já estavam a fechar e os boémios se dirigiam, portanto, às discotecas. Ela não me pediu dinheiro. Sugeri que a senhora aguardasse na rua lateral da praça, onde os táxis ficavam, já que seria mais seguro para ela. “O menino me faz companhia até lá? Estão muito longe os táxis? É que eu não consigo mesmo andar. Desde o Desastre é que não consigo mais andar direito, menino. E hoje já caminhei mais de três horas!”. Fomos a caminhar, muito lentamente, e sempre com pausas, até a rua lateral da praça. Ela não me pediu dinheiro. “Eu já morei em França, menino. Antes de voltar pra cá, estava a trabalhar em Espanha, para uma madame italiana. Já trabalhei em restaurantes, já trabalhei em hotéis. Estava a trabalhar em um hotel em Espanha para essa madame italiana, mas partiram o hotel inteiro, eu vim-me embora pra cá”. Mais uns três ou quatro passos, sempre angariados no carrinho que ela possuía – parecia uma mistura entre um carrinho de bebé e um carrinho de compras de supermercado – e uma pausa. Ela não me pediu dinheiro. “O meu nome é Teresa. Qual é o nome do menino? Vítor? Que nome bonito! Eu sou a Teresa. Eu moro em Faro, menino. O menino conhece? Pois, eu durmo mesmo lá ao pé do aeroporto. Mas agora está perigoso. Tem gente má, menino! Tem gente má. Fazem mal a gente, é perigoso. Eu tenho medo. Moras a quantos anos em Portugal? Ah, e já voltas ao Brasil? Pois, se tens lá os teus pais, é melhor mesmo voltar”. Ela não me pediu dinheiro. Chegamos aos bancos perto do ponto de táxi e ela se sentou. “Tenho os joelhos todos inchados, menino. Desde o Desastre é que já não consigo andar. Quando era rapariga, antes de morar no estrangeiro – já trabalhei em França, Espanha, Equador – eu morava perto do Gulbenkian, o menino conhece? Onde o menino mora? Benfica? É longe, não é? Como é que o menino vai embora? E esse autocarro passa no Cais de Sodré? Ah, de todo modo, ainda é muito cedo, não é? Preciso esperar mais, ainda não deve haver comboio para Cascais”. Ela não me pediu dinheiro. “Que hora são, menino? Vinte pras quatro? Ah, três e vinte... Logo o dia já amanhece. Eu me lembro, quando trabalhava em padarias, e tinha que fazer os pães às três, quatro horas da manhã, de ver o dia a clarear... Ei, moça, onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré? Não sabes? Pois, tá bem, elas não devem morar cá nessa zona, menino”. As pessoas passavam pela praça, com destino às discotecas, e estranhavam ao ver um jovem rapaz, de sapato e fato a conversar com uma velha senhora, com roupas velhas e um velho carrinho com uma caixa de papelão. Mas as pessoas não diziam nada, só passavam. Olhavam e passavam. Ela não me pediu dinheiro. “Eu tava bem lá até agora, menino. Mas passou um homem estranho, fiquei com medo. Já faz dois dias que não durmo, menino. Eu tenho medo. O homem parecia mau, fiquei com medo. Dois dias que não tomo banho. Eu não gosto da casa lá em Cascais que estou a ir, menino, mas pelo menos eu não pago, não é? Posso tomar um banho e dormir um bocado. Já faz dois dias que não durmo, menino. Sou de Faro, peguei o autocarro até Lisboa, menino. Depois andei, andei três horas. Mas meus joelhos já não aguentam mais, menino. Eu estou com cento e vinte quilos. Desde o Desastre que já não aguento mais”. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não quer se sentar? O menino já tem que ir? Ah, tá bem, tens que pegar o autocarro. É que eu estava mesmo a gostar da companhia do menino. Meu nome é Teresa, qual o nome do menino? Vítor? Reze por mim, Vítor. Obrigada, boa noite, tudo de bom, menino”. E eu subi a rua lateral da praça, até a paragem do autocarro. Não conseguia parar de pensar na história da D. Teresa. Via-se que ela não era uma desabrigada desde sempre. Ela havia tido uma vida, tinha trabalhado no exterior, sabia conversar. Tinha modos de quem teve certa educação. Mas, agora, não tinha nada. Não tinha onde dormir, não tinha bem a quem recorrer. Tinha um velho cobertor nas costas, insuficiente para protegê-la do frio. Tinha medo das pessoas. Tinha uma velha caixa de papelão com algumas outras poucas roupas dentro. Tinha um carrinho que fazia como se fosse andador, uma vez que os joelhos e o sobrepeso já não a deixavam caminhar. Tinha umas poucas moedas nas mãos. Mas ela não me pediu dinheiro.  Ela tinha carência de companhia, queria alguém para conversar, para que o tempo passasse mais rápido, para dar-lhe segurança contra os homens maus. E eu segui até a paragem do autocarro, sempre a pensar: “Deus, o que é que eu posso fazer? Posso dar dinheiro, o que, se calhar, vá ajudá-la momentaneamente. Mas e depois? Como ela ficará?” De qualquer modo, não dei dinheiro. Ela devia ter fome, assim como tinha frio. Mas não disse nada sobre comida. Ela não me pediu dinheiro. E eu, que vinha a amaldiçoar a minha própria vida antes de encontrá-la... Eu vi a CRISE, eu vi a materialização da crise, bem ali, diante de mim, a poucos centímetros. Eu vi a personificação humana desta tão falada crise. E a CRISE, a externa, causou em mim grande CRISE, interna. Que fazer? Como reagir? O que pensar? Como agir? Oh, Céus, o que é possível de se fazer? Por que isso? Por quê? Por quê? O autocarro chegou, lotado como sempre. Eram três e meia, em ponto. Entrei, ainda a pensar na D. Teresa. Que destino teria ela? Conseguiria chegar, sozinha, até o Cais de Sodré? Teria mesmo essa “madrinha” em Cascais para oferecer-lhe casa e banho? Ela conseguiria dormir naquela praça, com todas aquelas pessoas a passar? Entrei em casa. Fui ao meu quarto. Tudo o que consegui fazer foi chorar. Chorar por aquela Teresa, ao pensar em quantas e quantas Teresas é que existem aí pelo mundo. E ainda a senhora tinha o mesmo nome de minha avó! E se fosse a minha avó naquela situação? Chorei. Chorei. Chorei. Deitado na cama, chorei compulsivamente, feito uma criança, até já não ter mais forças para chorar.