“Ó,
menino, venha cá um bocado, faça o favor!” – chamou-me uma velha senhora, ao se
levantar de um banco da praça pela qual eu passava para chegar até a paragem do
autocarro. Aparentemente, era uma mendiga: despenteada, com um carrinho nas
mãos no qual havia uma caixa, e com um sofrido cobertor (com estampa da
bandeira de Portugal) nas costas. Sem saber o porquê – já que nessas situações,
como a maior parte das pessoas, a minha atitude é sempre me desvencilhar desses
tipos – cheguei próximo à senhora. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não me
faz companhia? Eu estava ali sentada e até agora não tinha tido nenhum
problema. Mas agora passou um homem estranho, tenho medo!”. Ela andava com
muita dificuldade, era mesmo um martírio dar três ou quatro passos. “Ó, menino,
tu sabes onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré? Vou até Cascais,
na casa de uma madrinha minha, mas não consigo andar até o Cais”. Ela não me
pediu dinheiro. Os autocarros para o Cais de Sodré passavam ali mesmo, naquela
avenida da praça, mas de que adiantava ela pegá-lo àquele horário? Eram quase
três horas da manhã, fazia frio, ventava, as pessoas estavam a passar pela
praça uma vez que todos os bares do Bairro Alto já estavam a fechar e os boémios se
dirigiam, portanto, às discotecas. Ela não me pediu dinheiro. Sugeri que a
senhora aguardasse na rua lateral da praça, onde os táxis ficavam, já que seria
mais seguro para ela. “O menino me faz companhia até lá? Estão muito longe os
táxis? É que eu não consigo mesmo andar. Desde o Desastre é que não consigo
mais andar direito, menino. E hoje já caminhei mais de três horas!”. Fomos a
caminhar, muito lentamente, e sempre com pausas, até a rua lateral da praça.
Ela não me pediu dinheiro. “Eu já morei em França, menino. Antes de voltar pra
cá, estava a trabalhar em Espanha, para uma madame italiana. Já trabalhei em
restaurantes, já trabalhei em hotéis. Estava a trabalhar em um hotel em Espanha
para essa madame italiana, mas partiram o hotel inteiro, eu vim-me embora pra
cá”. Mais uns três ou quatro passos, sempre angariados no carrinho que ela
possuía – parecia uma mistura entre um carrinho de bebé e um carrinho de
compras de supermercado – e uma pausa. Ela não me pediu dinheiro. “O meu nome é
Teresa. Qual é o nome do menino? Vítor? Que nome bonito! Eu sou a Teresa. Eu
moro em Faro, menino. O menino conhece? Pois, eu durmo mesmo lá ao pé do
aeroporto. Mas agora está perigoso. Tem gente má, menino! Tem gente má. Fazem
mal a gente, é perigoso. Eu tenho medo. Moras a quantos anos em Portugal? Ah, e
já voltas ao Brasil? Pois, se tens lá os teus pais, é melhor mesmo voltar”. Ela
não me pediu dinheiro. Chegamos aos bancos perto do ponto de táxi e ela se
sentou. “Tenho os joelhos todos inchados, menino. Desde o Desastre é que já não
consigo andar. Quando era rapariga, antes de morar no estrangeiro – já
trabalhei em França, Espanha, Equador – eu morava perto do Gulbenkian, o menino
conhece? Onde o menino mora? Benfica? É longe, não é? Como é que o menino vai
embora? E esse autocarro passa no Cais de Sodré? Ah, de todo modo, ainda é
muito cedo, não é? Preciso esperar mais, ainda não deve haver comboio para
Cascais”. Ela não me pediu dinheiro. “Que hora são, menino? Vinte pras quatro?
Ah, três e vinte... Logo o dia já amanhece. Eu me lembro, quando trabalhava em
padarias, e tinha que fazer os pães às três, quatro horas da manhã, de ver o
dia a clarear... Ei, moça, onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré?
Não sabes? Pois, tá bem, elas não devem morar cá nessa zona, menino”. As pessoas
passavam pela praça, com destino às discotecas, e estranhavam ao ver um jovem
rapaz, de sapato e fato a conversar com uma velha senhora, com roupas velhas e
um velho carrinho com uma caixa de papelão. Mas as pessoas não diziam nada, só
passavam. Olhavam e passavam. Ela não me pediu dinheiro. “Eu tava bem lá até
agora, menino. Mas passou um homem estranho, fiquei com medo. Já faz dois dias
que não durmo, menino. Eu tenho medo. O homem parecia mau, fiquei com medo.
Dois dias que não tomo banho. Eu não gosto da casa lá em Cascais que estou a
ir, menino, mas pelo menos eu não pago, não é? Posso tomar um banho e dormir um
bocado. Já faz dois dias que não durmo, menino. Sou de Faro, peguei o autocarro
até Lisboa, menino. Depois andei, andei três horas. Mas meus joelhos já não
aguentam mais, menino. Eu estou com cento e vinte quilos. Desde o Desastre que
já não aguento mais”. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não quer se sentar?
O menino já tem que ir? Ah, tá bem, tens que pegar o autocarro. É que eu estava
mesmo a gostar da companhia do menino. Meu nome é Teresa, qual o nome do
menino? Vítor? Reze por mim, Vítor. Obrigada, boa noite, tudo de bom, menino”.
E eu subi a rua lateral da praça, até a paragem do autocarro. Não conseguia
parar de pensar na história da D. Teresa. Via-se que ela não era uma
desabrigada desde sempre. Ela havia tido uma vida, tinha trabalhado no
exterior, sabia conversar. Tinha modos de quem teve certa educação. Mas, agora,
não tinha nada. Não tinha onde dormir, não tinha bem a quem recorrer. Tinha um
velho cobertor nas costas, insuficiente para protegê-la do frio. Tinha medo das
pessoas. Tinha uma velha caixa de papelão com algumas outras poucas roupas
dentro. Tinha um carrinho que fazia como se fosse andador, uma vez que os joelhos e
o sobrepeso já não a deixavam caminhar. Tinha umas poucas moedas nas mãos. Mas
ela não me pediu dinheiro. Ela tinha
carência de companhia, queria alguém para conversar, para que o tempo passasse
mais rápido, para dar-lhe segurança contra os homens maus. E eu segui até a
paragem do autocarro, sempre a pensar: “Deus, o que é que eu posso fazer? Posso
dar dinheiro, o que, se calhar, vá ajudá-la momentaneamente. Mas e depois? Como
ela ficará?” De qualquer modo, não dei dinheiro. Ela devia ter fome, assim como
tinha frio. Mas não disse nada sobre comida. Ela não me pediu dinheiro. E eu,
que vinha a amaldiçoar a minha própria vida antes de encontrá-la... Eu vi a
CRISE, eu vi a materialização da crise, bem ali, diante de mim, a poucos
centímetros. Eu vi a personificação humana desta tão falada crise. E a CRISE, a
externa, causou em mim grande CRISE, interna. Que fazer? Como reagir? O que
pensar? Como agir? Oh, Céus, o que é possível de se fazer? Por que isso? Por
quê? Por quê? O autocarro chegou, lotado como sempre. Eram três e meia, em
ponto. Entrei, ainda a pensar na D. Teresa. Que destino teria ela? Conseguiria
chegar, sozinha, até o Cais de Sodré? Teria mesmo essa “madrinha” em Cascais
para oferecer-lhe casa e banho? Ela conseguiria dormir naquela praça, com todas
aquelas pessoas a passar? Entrei em casa. Fui ao meu quarto. Tudo o que
consegui fazer foi chorar. Chorar por aquela Teresa, ao pensar em quantas e
quantas Teresas é que existem aí pelo mundo. E ainda a senhora tinha o mesmo
nome de minha avó! E se fosse a minha avó naquela situação? Chorei. Chorei.
Chorei. Deitado na cama, chorei compulsivamente, feito uma criança, até já não
ter mais forças para chorar.