quarta-feira, 15 de maio de 2013

A estratégia de construção de um inimigo comum





Os Estados Unidos da América se utilizam, desde a época da Guerra da Fria, em sua política externa, da estratégia de possuírem um inimigo externo. Conforme escreve Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos, “um inimigo externo ameaçando os EUA, não deixava de ser conveniente para governos americanos que haviam concluído, corretamente, que seu país era agora uma potência mundial”. Com o fim da União Soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, os Estados Unidos se viram na necessidade de “encontrar” outro inimigo externo. Segundo Fred Halliday, em artigo publicado na revista Contexto Internacional, em 1994, o islamismo seria o inimigo da vez; essa ideia foi reforçada após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Não é só no âmbito internacional, da política externa, que se recorre à criação de um inimigo comum; verifica-se o mesmo na esfera nacional. Os evangélicos fundamentalistas, por exemplo, como afirma Magali Cunha¹, vêm historicamente se utilizando desse artifício: “Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja Católica Romana sempre foi identificada como tal e sempre foi combatida no campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos grupos pentecostais”.

Como no caso dos Estados Unidos, o inimigo criado pelos evangélicos fundamentalistas também se modificou ao longo do tempo e hoje, certamente, conforme afirma Magali Cunha, são os homossexuais. A fim de se verificar essa constatação, basta olhar para os discursos do pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara Federal. Presidente, aliás, cujo primeiro projeto proposto foi sobre a autorização para que a “cura gay” possa ser feita por parte dos psicólogos (que, caso seja aprovado, será um retrocesso de, pelo menos, 30 anos na história da Psicologia). Além disso, pode-se verificar que os evangélicos fundamentalistas elegeram os homossexuais como o maior inimigo atual ao ter acesso às declarações de outro pastor muito conhecido dos brasileiros: Silas Malafaia. Por fim, para ficar com um último exemplo, bem recente: ontem foi divulgado que a Frente Evangélica, que reúne os evangélicos do Congresso Nacional, está discutindo uma medida contra o ato do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que aprovou, também ontem, resolução obrigando todos os cartórios do Brasil a celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (a união estável, vale lembrar, já era garantida desde a manifestação favorável em maio de 2011, pelo Supremo Tribunal Federal).

A pergunta que resta, então, tanto no caso da política externa norte-americana, como na atitude dos evangélicos fundamentalistas no Brasil, é: por que se cria, constrói-se, elege-se, um inimigo comum àquele grupo?

Trata-se de uma questão identitária. Não existe recurso mais favorável para dar coesão a um grupo, para uni-lo, do que um inimigo comum, algo/alguém a ser combatido, perseguido. Nos casos mencionados, a criação do um inimigo é baseada em construções sociais feitas ao longo do tempo (“a homossexualidade é errada, é coisa do Diabo”) ou em generalizações perigosas (“todos os islâmicos são terroristas e querem acabar com os Estados Unidos da América”). Mas o fato é que esse inimigo imaginado confere força ao grupo, uma vez que dá a ele coesão, isto é, os indivíduos daquele grupo passam a pensar, em sua maioria, da mesma maneira, o que facilita um plano de ação, propostas políticas, etc (como uma guerra, por exemplo, no caso da política externa estadunidense).

Uma identidade sempre precisa de uma alteridade, ou de alteridades, para se constituir. Ou seja, necessitamos dos outros para saber quem somos e quem não somos. Portanto, a identidade sempre se dá em uma interação com a alteridade, o outro, o diferente. Afinal de contas, as identidades não são fechadas, imutáveis, absolutas, permanentes; pelo contrário, elas estão em constante processo de adaptação, de modificação, o que acontece, em especial, justamente devido a esse contato com os outros.

A estratégia de se construir um inimigo comum, entretanto, não entende a identidade em uma relação de interação com a alteridade, com o diferente, aquele que não é o que eu sou. Essa estratégia considera a alteridade (o diferente) em uma relação de conflito, ou seja, aquele que não é como eu sou (ocidental; heterossexual; etc) é menos, é inferior, é errado aos olhos de Deus e, portanto, deve ser combatido e perseguido.

É importante ressaltar que as identidades podem, sim, levar a conflitos. Entretanto, elas não precisam necessariamente ter esse destino. Pode-se aprender muito com aquele que não é como eu sou, que pensa de uma maneira diferente, age de outro modo, tem outras crenças, veste-se de um jeito diverso do meu ou se relaciona com pessoas com as quais eu não me relaciono.

Mas lidar com a diferença, com as alteridades, é difícil. A diferença incomoda, faz pensar se de fato nossas Verdades são as “verdadeiras”, se a nossa visão de mundo é A visão de mundo. Os seres humanos, no geral, seja individualmente, seja em grupo, tem muita dificuldade em lidar com a diversidade, já que ela exige reflexão, análise e, muitas vezes, a constatação de que se estava equivocado, ou então, ao menos, de que existem outras maneiras possíveis de se fazer determinadas ações ou de se encarar certas realidades. Por isso é que se tenta tornar todos iguais, iguais a MIM, para que EU possa entender, para que faça sentido na MINHA concepção...



¹Magali do Nascimento Cunha é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. O trecho foi retirado de seu artigo “O que se esconde atrás do caso Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos”, disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2013/05/09/o-que-se-esconde-atras-do-caso-marco-feliciano-da-comissao-de-direitos-humanos/

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