Os
Estados Unidos da América se utilizam, desde a época da Guerra da Fria, em sua
política externa, da estratégia de possuírem um inimigo externo. Conforme
escreve Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos, “um inimigo externo
ameaçando os EUA, não deixava de ser conveniente para governos americanos que
haviam concluído, corretamente, que seu país era agora uma potência mundial”.
Com o fim da União Soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, os Estados
Unidos se viram na necessidade de “encontrar” outro inimigo externo. Segundo
Fred Halliday, em artigo publicado na revista Contexto Internacional, em 1994,
o islamismo seria o inimigo da vez; essa ideia foi reforçada após os atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001.
Não
é só no âmbito internacional, da política externa, que se recorre à criação de
um inimigo comum; verifica-se o mesmo na esfera nacional. Os evangélicos fundamentalistas,
por exemplo, como afirma Magali Cunha¹, vêm historicamente se utilizando desse
artifício: “Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e
Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos
brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da identificação
de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja Católica Romana sempre
foi identificada como tal e sempre foi combatida no campo simbólico mas também
no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões afro-brasileiras também
ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos grupos pentecostais”.
Como
no caso dos Estados Unidos, o inimigo criado pelos evangélicos fundamentalistas
também se modificou ao longo do tempo e hoje, certamente, conforme afirma
Magali Cunha, são os homossexuais. A fim de se verificar essa constatação,
basta olhar para os discursos do pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão
de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara Federal. Presidente, aliás,
cujo primeiro projeto proposto foi sobre a autorização para que a “cura gay”
possa ser feita por parte dos psicólogos (que, caso seja aprovado, será um
retrocesso de, pelo menos, 30 anos na história da Psicologia). Além disso,
pode-se verificar que os evangélicos fundamentalistas elegeram os homossexuais
como o maior inimigo atual ao ter acesso às declarações de outro pastor muito
conhecido dos brasileiros: Silas Malafaia. Por fim, para ficar com um último
exemplo, bem recente: ontem foi divulgado que a Frente Evangélica, que reúne os
evangélicos do Congresso Nacional, está discutindo uma medida contra o ato do
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que aprovou, também ontem, resolução
obrigando todos os cartórios do Brasil a celebrar o casamento civil entre
pessoas do mesmo sexo (a união estável, vale lembrar, já era garantida desde a
manifestação favorável em maio de 2011, pelo Supremo Tribunal Federal).
A
pergunta que resta, então, tanto no caso da política externa norte-americana,
como na atitude dos evangélicos fundamentalistas no Brasil, é: por que se cria,
constrói-se, elege-se, um inimigo comum àquele grupo?
Trata-se
de uma questão identitária. Não existe recurso mais favorável para dar coesão a
um grupo, para uni-lo, do que um inimigo comum, algo/alguém a ser combatido,
perseguido. Nos casos mencionados, a criação do um inimigo é baseada em construções
sociais feitas ao longo do tempo (“a homossexualidade é errada, é coisa do
Diabo”) ou em generalizações perigosas (“todos os islâmicos são terroristas e
querem acabar com os Estados Unidos da América”). Mas o fato é que esse inimigo
imaginado confere força ao grupo, uma vez que dá a ele coesão, isto é, os
indivíduos daquele grupo passam a pensar, em sua maioria, da mesma maneira, o
que facilita um plano de ação, propostas políticas, etc (como uma guerra, por
exemplo, no caso da política externa estadunidense).
Uma
identidade sempre precisa de uma alteridade, ou de alteridades, para se
constituir. Ou seja, necessitamos dos outros para saber quem somos e quem não
somos. Portanto, a identidade sempre se dá em uma interação com a alteridade, o
outro, o diferente. Afinal de contas, as identidades não são fechadas,
imutáveis, absolutas, permanentes; pelo contrário, elas estão em constante processo
de adaptação, de modificação, o que acontece, em especial, justamente devido a esse
contato com os outros.
A
estratégia de se construir um inimigo comum, entretanto, não entende a
identidade em uma relação de interação com a alteridade, com o diferente,
aquele que não é o que eu sou. Essa estratégia considera a alteridade (o
diferente) em uma relação de conflito, ou seja, aquele que não é como eu sou
(ocidental; heterossexual; etc) é menos, é inferior, é errado aos olhos de Deus
e, portanto, deve ser combatido e perseguido.
É
importante ressaltar que as identidades podem, sim, levar a conflitos.
Entretanto, elas não precisam necessariamente ter esse destino. Pode-se
aprender muito com aquele que não é como eu sou, que pensa de uma maneira
diferente, age de outro modo, tem outras crenças, veste-se de um jeito diverso
do meu ou se relaciona com pessoas com as quais eu não me relaciono.
Mas
lidar com a diferença, com as alteridades, é difícil. A diferença incomoda, faz
pensar se de fato nossas Verdades são as “verdadeiras”, se a nossa visão de
mundo é A visão de mundo. Os seres humanos, no geral, seja individualmente,
seja em grupo, tem muita dificuldade em lidar com a diversidade, já que ela
exige reflexão, análise e, muitas vezes, a constatação de que se estava
equivocado, ou então, ao menos, de que existem outras maneiras possíveis de se
fazer determinadas ações ou de se encarar certas realidades. Por isso é que se
tenta tornar todos iguais, iguais a MIM, para que EU possa entender, para que faça
sentido na MINHA concepção...
¹Magali
do Nascimento Cunha é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. O trecho
foi retirado de seu artigo “O que se esconde atrás do caso Marco Feliciano da
Comissão de Direitos Humanos”, disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2013/05/09/o-que-se-esconde-atras-do-caso-marco-feliciano-da-comissao-de-direitos-humanos/
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