Os humanos são seres
biológicos e também seres culturais. Isso pode, em um primeiro momento, parecer
uma constatação básica, primária, banal. No entanto, é por não se ter total
clareza acerca dessa dupla caracterização do que é o humano que muitos
fenômenos são visto como anormais, ridículos ou “bárbaros”. Se todos os homens
são seres biológicos, ou orgânicos, e precisam comer, dormir, respirar, isto é,
possuem funções vitais, por que os hábitos entre diferentes grupos sociais são
tão diversos uns dos outros?
A resposta está justamente no fato de que os humanos são
também culturais, além de seres biológicos, como explica o antropólogo Roque
Laraia: “Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos
primatas, depende muito de seu equipamento biológico. Para se manter vivo,
independente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer um
número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respiração,
a atividade sexual etc. Mas, embora estas funções sejam comuns a toda a
humanidade, a maneira de satisfazê-la varia de uma cultura para outra. É esta
grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz com
que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural”.
Alimentar-se, por exemplo, é uma necessidade biológica
que todos os seres humanos, de todos os lugares do planeta, possuem.
Entretanto, o que se come e a maneira pela qual se alimenta são características
culturais e, portanto, específicas para cada grupo humano. As rãs são
consideradas iguarias na França, mas parece ser grande absurdo para um
brasileiro comer esse anfíbio. A carne de vaca, imprescindível nos churrascos
brasileiros, é proibida aos hindus. Do mesmo modo, a carne de porco não é
permitida a alguns povos por questões religiosas.
A maneira pela qual se alimenta também é variável de
localidade para localidade. Se os brasileiros normalmente se utilizam de garfo
e faca, aos japoneses é mais comum o uso de palitos (hashi). E outras
sociedades preferem utilizar as próprias mãos para se alimentar. Além disso, o
ato de comer pode ser público para algumas culturas, ou uma atividade privada
para outras. Um arroto após a refeição pode ser entendido como um sinal de que
a comida estava boa ou, em outro contexto cultural, ser um sinal de má
educação.
Dar à luz é um ato biológico e restrito aos seres humanos
do sexo feminino. A maneira como se faz o nascimento de um bebê, entretanto,
pode variar bastante no que diz respeito à posição em que a mãe se encontra
durante esse ato: estamos acostumados a ver a mãe deitada sobre as costas, mas
entre algumas tribos indígenas a posição convencional é de cócoras. É possível
se pensar, ainda, em partos que acontecem com a mãe estando em pé.
Os exemplos de diferenças culturais são infinitos. Variam
as formas como as pessoas comem, como dormem (em camas, em redes, etc), a
maneira como têm relações sexuais, as bebidas que tomam, etc. O que deve ser
evidenciado, portanto, é que o ser humano, apesar de biológico, é um ser
predominantemente cultural, ou seja, o comportamento humano dos sujeitos de uma
cultura dependem de um aprendizado social a que eles estão submetidos.
Por que se faz relevante ressaltar o componente cultural
do humano? Ora, que o ser humano é biológico é evidente: todos precisam dormir,
comer, beber, descansar. Muitos, entretanto, tentam minimizar os efeitos da
cultura na vida dos indivíduos, sobrevalorizando a biologia. Esses indivíduos
tendem a ver como “naturais” várias questões que, na verdade, são culturais. E
o problema está quando se tende a ver como natural a sua própria prática
cultural (como comer carne de vaca, por exemplo, ou usar talheres durante as
refeições) e como “anormais”, ridículas ou inferiores as práticas culturais dos
outros (por exemplo comer rãs ou utilizar as próprias mãos para se alimentar
durante as refeições).
Sabendo, pois, que a partir de uma pequena quantidade de
funções vitais, ou seja, biológicas, os seres humanos de diversos grupos
desenvolveram maneiras diferentes de satisfazê-las, criando suas próprias
culturas, torna-se evidente que a maioria das práticas humanas são sociais,
isto é, são aprendidas durante o processo de socialização (que começa na
família, continua na escola, etc). Tendo essa premissa em mente, não faz
sentido considerar todas as práticas que são diferentes das nossas como sendo
“bárbaras”, inferiores ou ridículas.
Somos todos seres biológicos. Mas somos seres biológicos
que produzimos cultura, sendo também, portanto, seres culturais.
Sugestão
de leitura:
-
Livro “Cultura: um conceito antropológico”, de Roque de Barros Laraia.
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