Ela acorda, todos os dias, às 4 horas da manhã. “Ah, essa vida não é fácil, não”. Mas, pelo menos, ela ganhava bem. O dia anterior havia sido o quinto dia útil, então ela resolveu dar uma olhada, através da internet, para confirmar se o salário já estava em sua conta. Alguns minutos depois, a sua grande decepção: “Não acredito! Canalhas! Faço hora extra todos os dias e não recebo por isto. E, além de tudo, ainda não recebi o aumento que faz três meses que eles me prometeram! Que droga de vida, continuar ganhando míseros 15 mil reais!”
Num estresse total, arrumou-se e se dirigiu até o serviço, uma vez que às sete e meia já tinha que estar totalmente pronta, no estúdio. Ela entrava no ar diariamente (exceto aos domingos) às oito horas da manhã. Mas, para que tudo ficasse pronto a tempo, a jornalista, que era também editora e âncora do telejornal, tinha que chegar ao serviço às 5 horas da manhã. “Só mesmo muita maquiagem pra dar uma escondida nestas olheiras”.
Notícias do dia: final de semana será de chuva (“Meu São Pedro, será que não vai parar de chover mais este ano?”), presos fazem rebelião em uma penitenciária, quatro agentes são reféns (“Novidade! Todo ano isso acontece mesmo...”); fora estas notícias, só da Haiti, Haiti e mais Haiti (“Bom, pelo menos a tragédia é grande, e nós fomos os primeiros a mandar correspondentes internacionais, então a audiência de hoje será alta”).
Antes de entrar ao estúdio, a jornalista havia ligado na garagem de carros. “Ninguém atende. Fechada, ainda? Mas já são cinco horas da manhã! Será que este povo não trabalha, não?!”. Seu sentimento era ruim. Ela sabia que, sem o desejado e prometido aumento salarial, não poderia comprar seu sonho de consumo dos últimos dois meses: uma Mitsubishi Pajero zero quilômetros. “O jeito vai ser continuar andando neste carro modelo 2008 mesmo!”
Telejornal no ar, ela começa a enfrentar os 45 minutos mais estressantes do seu dia. Sendo âncora, ela tinha que estar sempre cuidadosamente impecável, tomar cuidado com as palavras e com a dicção, para que nenhuma gafe fosse cometida, prestar atenção em qual câmera deveria focar para dar a notícia. “Ah, e é claro, não demonstrar a menor reação, fosse a notícia que fosse”. Isso, entretanto, ela não havia aprendido nos seus anos de universitária, na Pontifícia Universidade Católica. “Este é o meu diferencial. Minha maneira de apresentar”.
“Bom dia. Já estamos no ar com os destaques do dia 15 de janeiro de 2010, o dia em que o corpo da médica Zilda Arns será velado, em Curitiba, após ser trazido do Haiti, onde, durante o terremoto que assolou o país, a fundadora da Pastoral da Criança faleceu. E, além disto: ONU afirma que 300 mil haitianos estão desabrigados e cerca de 10% da capital Porto Príncipe está destruída; catorze militares brasileiros mortos no Haiti, outros quatro continuam desaparecidos; final de semana será de mais chuva; presos se rebelam no Paraná e fazem quatro agentes penitenciários como reféns!”
“Só desgraça. Que beleza! Audiência lá em cima hoje. Ainda bem que o que aconteceu no Haiti foi esta semana, porque se fosse semana passada ia coincidir com as tragédias de desabamento, e esta semana não teríamos novidades. Como o povo esquece rápido das notícias. Ninguém se lembra mais da tragédia brasileira. Certo estava meu professor Antônio que nos alertava que quanto maior a desgraça, quanto mais fotos chocantes e declarações emotivas, maior a audiência. Pena que, no meu caso, esta maior audiência não implica em um maior salário. Ah, mais deixa a edição terminal, que meu chefe vai é escutar. É um absurdo!”
Intervalo comercial. A jornalista saca seu celular e o liga (celulares tinham que ficar desligados enquanto o telejornal estivesse no ar). “Puta merda, agora já são oito e dez. Será que a concessionária não vai abrir? Alô. Ah, oi. Finalmente. Bom, eu quero saber quanto está custando a Mitsubishi Pajero. Quê? Tudo isto? Você tá é louco! Não, o pagamento não vai ser a vista. Mas como assim não tem desconto então? Eu quero dividir em seis vezes só. Hoje em dia vocês dividem em até 60 meses!” Ela desliga o celular. A contagem regressiva de cinco segundos termina e ela volta ao ar.
“É, esta vida não é mole não. Vou ter que continuar com este celularzinho mesmo, que até o padeiro da esquina já tem, e com meu carro 2008 por mais uns meses. Ah, e vou ter que continuar dando estas notícias, né, fazer o quê? Pouco me importa o que eles estão mandando ou não pro Haiti. Não quero saber se são 100 ou 200 mil mortos. Por que estes idiotas gostam tanto de saber da vida dos outros? Ahh, se pelo menos eu tivesse ganhado na mega-sena da virada. Estaria é bem longe daqui, de carro zero, celular novo, tomando um solzinho em alguma ilha grega. Ah, vida...”
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