quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“Padrões” sociais

A loira tem que ser burra.
O gay tem que ser afeminado.
O homem tem que ser fanático por futebol.
A mulher tem que ser má motorista.
A lésbica tem que ser machona. 
A gordinha tem que ser alegre.
A travesti tem que ser prostituta.
A mulher tem que ser boa cozinheira.
O ladrão tem que ser negro. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

“Uma lésbica chegou em mim!”


– Vítor, você não sabe o que aconteceu ontem... – começou ela, com ar de suspense.
– O quê? – perguntei, curioso.
– Uma lésbica chegou em mim!
– E daí?
– E daí?! Como assim “e daí”? Uma lésbica, Vítor, uma lésbica!
– E qual o problema?
– Eu não curto, sou hétero.
– Ué, beleza. Era só ter falado pra ela...
– Não, mas o problema não foi só esse. Além de ter vindo falar comigo – e, nesse momento, uma expressão de nojo surgiu em sua face – ela veio se esfregando, dançando até o chão.
– Tá, mais aí você falou que não curtia, certo?
– Sim, mas ela continuou, véi. Que nojo! Ela é lésbica, eu não curto.
– Tá bem, mas ela não sabia que você não curte até você falar...
– Ela chegou se esfregando, relando em mim!
– Olha, ela não sabia que você era hétero. Você podia ser lésbica e ter gostado, não tinha como ela saber. Não tem vários homens que chegam em você também relando, se esfregando? Tenho certeza que sim!
– Sim, tem. E eu não gosto. Acho ridículo.
– Então o “problema” não foi o fato de uma lésbica ter chegado em você. Pense se a situação fosse o contrário: você é lésbica e chega um cara se esfregando em você, dançando até o chão. Ele não sabia que você era lésbica... Você ficaria ofendida do mesmo jeito, acharia um absurdo. O problema então foi o modo como ela te abordou, faltando com respeito, o que você não gostou, e não o fato de ela ser uma lésbica! 
– Ai, ainda assim, era uma lésbica...

segunda-feira, 15 de julho de 2013

CRISE



“Ó, menino, venha cá um bocado, faça o favor!” – chamou-me uma velha senhora, ao se levantar de um banco da praça pela qual eu passava para chegar até a paragem do autocarro. Aparentemente, era uma mendiga: despenteada, com um carrinho nas mãos no qual havia uma caixa, e com um sofrido cobertor (com estampa da bandeira de Portugal) nas costas. Sem saber o porquê – já que nessas situações, como a maior parte das pessoas, a minha atitude é sempre me desvencilhar desses tipos – cheguei próximo à senhora. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não me faz companhia? Eu estava ali sentada e até agora não tinha tido nenhum problema. Mas agora passou um homem estranho, tenho medo!”. Ela andava com muita dificuldade, era mesmo um martírio dar três ou quatro passos. “Ó, menino, tu sabes onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré? Vou até Cascais, na casa de uma madrinha minha, mas não consigo andar até o Cais”. Ela não me pediu dinheiro. Os autocarros para o Cais de Sodré passavam ali mesmo, naquela avenida da praça, mas de que adiantava ela pegá-lo àquele horário? Eram quase três horas da manhã, fazia frio, ventava, as pessoas estavam a passar pela praça uma vez que todos os bares do Bairro Alto já estavam a fechar e os boémios se dirigiam, portanto, às discotecas. Ela não me pediu dinheiro. Sugeri que a senhora aguardasse na rua lateral da praça, onde os táxis ficavam, já que seria mais seguro para ela. “O menino me faz companhia até lá? Estão muito longe os táxis? É que eu não consigo mesmo andar. Desde o Desastre é que não consigo mais andar direito, menino. E hoje já caminhei mais de três horas!”. Fomos a caminhar, muito lentamente, e sempre com pausas, até a rua lateral da praça. Ela não me pediu dinheiro. “Eu já morei em França, menino. Antes de voltar pra cá, estava a trabalhar em Espanha, para uma madame italiana. Já trabalhei em restaurantes, já trabalhei em hotéis. Estava a trabalhar em um hotel em Espanha para essa madame italiana, mas partiram o hotel inteiro, eu vim-me embora pra cá”. Mais uns três ou quatro passos, sempre angariados no carrinho que ela possuía – parecia uma mistura entre um carrinho de bebé e um carrinho de compras de supermercado – e uma pausa. Ela não me pediu dinheiro. “O meu nome é Teresa. Qual é o nome do menino? Vítor? Que nome bonito! Eu sou a Teresa. Eu moro em Faro, menino. O menino conhece? Pois, eu durmo mesmo lá ao pé do aeroporto. Mas agora está perigoso. Tem gente má, menino! Tem gente má. Fazem mal a gente, é perigoso. Eu tenho medo. Moras a quantos anos em Portugal? Ah, e já voltas ao Brasil? Pois, se tens lá os teus pais, é melhor mesmo voltar”. Ela não me pediu dinheiro. Chegamos aos bancos perto do ponto de táxi e ela se sentou. “Tenho os joelhos todos inchados, menino. Desde o Desastre é que já não consigo andar. Quando era rapariga, antes de morar no estrangeiro – já trabalhei em França, Espanha, Equador – eu morava perto do Gulbenkian, o menino conhece? Onde o menino mora? Benfica? É longe, não é? Como é que o menino vai embora? E esse autocarro passa no Cais de Sodré? Ah, de todo modo, ainda é muito cedo, não é? Preciso esperar mais, ainda não deve haver comboio para Cascais”. Ela não me pediu dinheiro. “Que hora são, menino? Vinte pras quatro? Ah, três e vinte... Logo o dia já amanhece. Eu me lembro, quando trabalhava em padarias, e tinha que fazer os pães às três, quatro horas da manhã, de ver o dia a clarear... Ei, moça, onde é que apanho o autocarro para o Cais de Sodré? Não sabes? Pois, tá bem, elas não devem morar cá nessa zona, menino”. As pessoas passavam pela praça, com destino às discotecas, e estranhavam ao ver um jovem rapaz, de sapato e fato a conversar com uma velha senhora, com roupas velhas e um velho carrinho com uma caixa de papelão. Mas as pessoas não diziam nada, só passavam. Olhavam e passavam. Ela não me pediu dinheiro. “Eu tava bem lá até agora, menino. Mas passou um homem estranho, fiquei com medo. Já faz dois dias que não durmo, menino. Eu tenho medo. O homem parecia mau, fiquei com medo. Dois dias que não tomo banho. Eu não gosto da casa lá em Cascais que estou a ir, menino, mas pelo menos eu não pago, não é? Posso tomar um banho e dormir um bocado. Já faz dois dias que não durmo, menino. Sou de Faro, peguei o autocarro até Lisboa, menino. Depois andei, andei três horas. Mas meus joelhos já não aguentam mais, menino. Eu estou com cento e vinte quilos. Desde o Desastre que já não aguento mais”. Ela não me pediu dinheiro. “O menino não quer se sentar? O menino já tem que ir? Ah, tá bem, tens que pegar o autocarro. É que eu estava mesmo a gostar da companhia do menino. Meu nome é Teresa, qual o nome do menino? Vítor? Reze por mim, Vítor. Obrigada, boa noite, tudo de bom, menino”. E eu subi a rua lateral da praça, até a paragem do autocarro. Não conseguia parar de pensar na história da D. Teresa. Via-se que ela não era uma desabrigada desde sempre. Ela havia tido uma vida, tinha trabalhado no exterior, sabia conversar. Tinha modos de quem teve certa educação. Mas, agora, não tinha nada. Não tinha onde dormir, não tinha bem a quem recorrer. Tinha um velho cobertor nas costas, insuficiente para protegê-la do frio. Tinha medo das pessoas. Tinha uma velha caixa de papelão com algumas outras poucas roupas dentro. Tinha um carrinho que fazia como se fosse andador, uma vez que os joelhos e o sobrepeso já não a deixavam caminhar. Tinha umas poucas moedas nas mãos. Mas ela não me pediu dinheiro.  Ela tinha carência de companhia, queria alguém para conversar, para que o tempo passasse mais rápido, para dar-lhe segurança contra os homens maus. E eu segui até a paragem do autocarro, sempre a pensar: “Deus, o que é que eu posso fazer? Posso dar dinheiro, o que, se calhar, vá ajudá-la momentaneamente. Mas e depois? Como ela ficará?” De qualquer modo, não dei dinheiro. Ela devia ter fome, assim como tinha frio. Mas não disse nada sobre comida. Ela não me pediu dinheiro. E eu, que vinha a amaldiçoar a minha própria vida antes de encontrá-la... Eu vi a CRISE, eu vi a materialização da crise, bem ali, diante de mim, a poucos centímetros. Eu vi a personificação humana desta tão falada crise. E a CRISE, a externa, causou em mim grande CRISE, interna. Que fazer? Como reagir? O que pensar? Como agir? Oh, Céus, o que é possível de se fazer? Por que isso? Por quê? Por quê? O autocarro chegou, lotado como sempre. Eram três e meia, em ponto. Entrei, ainda a pensar na D. Teresa. Que destino teria ela? Conseguiria chegar, sozinha, até o Cais de Sodré? Teria mesmo essa “madrinha” em Cascais para oferecer-lhe casa e banho? Ela conseguiria dormir naquela praça, com todas aquelas pessoas a passar? Entrei em casa. Fui ao meu quarto. Tudo o que consegui fazer foi chorar. Chorar por aquela Teresa, ao pensar em quantas e quantas Teresas é que existem aí pelo mundo. E ainda a senhora tinha o mesmo nome de minha avó! E se fosse a minha avó naquela situação? Chorei. Chorei. Chorei. Deitado na cama, chorei compulsivamente, feito uma criança, até já não ter mais forças para chorar. 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A ditadura da água gelada


O sentido da palavra “ditadura” está um pouco banalizado atualmente. Usa-se “ditadura” a toda hora, para designar vários eventos que não são políticos. Isso faz com que a palavra perca o seu significado original, restrito, que, no caso de “ditadura”, estava associada à Política. Essas palavras – “ditadura” não é a única – são o que Stuart Hall denomina “signos sob rasura” e o que Ernesto Laclau chama de “signos flutuantes”.

É muito comum, por exemplo, falar-se da “ditadura da beleza” a fim de se referir ao padrão do que é tido como belo nos dias de hoje, isto é, mulheres altas e magras e homens fortes, com os músculos todos definidos. Se a “ditadura da beleza” faz sentido, já que se sabe a forte pressão que se sofre – em especial os mais jovens – para se atingir esses padrões físicos do que é tido como belo, ao mesmo tempo é possível se verificar usos ridículos da mesma palavra, como a suposta “ditadura gay” a qual muitas pessoas – religiosas ou não – utilizam para se referir à luta dos movimentos minoritários em busca de seus direitos civis.

Entrando no clima da brincadeira, mas para fazer uma crítica pertinente, resolvi escrever sobre a “ditadura da água gelada”. Em todos os estabelecimentos comerciais voltados à alimentação que eu vou, seja no interior ou na capital, sempre peço por uma garrafa de água SEM estar gelada. Eis a resposta que ouço: “Vou verificar se tem... Ah, me desculpe, estão todas no refrigerador, mas não está muito gelada não!”.

É uma raridade quando consigo uma garrafinha de água na temperatura ambiente, seja em uma rodoviária ou em um bem localizado shopping da cidade de São Paulo. E aí eu pergunto: cadê o respeito pelas pessoas que não gostam de tomar água gelada? Eu não tenho meu direito de querer e de ter acesso a uma garrafa de água na temperatura ambiente?

Se fosse só no verão, a época mais quente do ano, que isso acontecesse, ainda seria justificável. No entanto, em pleno outono, e com as temperaturas mais baixas, ainda assim, não é possível se conseguir uma garrafa de água sem estar gelada.

Portanto, lanço aqui o meu manifesto: “ABAIXO À DITADURA DA ÁGUA GELADA! Pelo direito de ter acesso à água em temperatura ambiente”.


Responsáveis pelos estabelecimentos comerciais voltados à alimentação: por favor, deixem sempre algumas garrafinhas de água fora da geladeira, okay?

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A data mais importante e a palavra mais significativa para uma pessoa


As pessoas gostam de ser lembradas, felicitadas, elogiadas. E se tem uma data em que elas mais gostam disso, é, claramente, o dia do aniversário. Na verdade, é essa a atitude que elas esperam nesse contexto. Normalmente, a data mais importante para um indivíduo é o dia em que ele nasceu, que é quando os seus melhores amigos lhe felicitam, sua família quer comemorar mais um ano de convivência e a pessoa se sente feliz por todos lhe ligarem, desejarem boas coisas, quererem estar juntos e até, às vezes, fazerem surpresas.

Sabendo da importância que o dia do aniversário tem, eu faço questão de sempre mandar uma mensagem carinhosa para os meus amigos, em especial para aqueles com os quais eu mais me identifico, os do círculo mais próximo de amizades. Faço questão de ligar, quando é possível, escrever algo à mão, por achar mais significativo entregar um recado com a minha própria caligrafia, ou, pelo menos, mandar uma mensagem bonita por computador mesmo, ou então um sms por celular.

Nem todos nossos amigos se lembram de nos felicitar, é verdade. Mas, mesmo assim, eu continuo fazendo questão de dar os parabéns a eles nos seus respectivos dias. O aniversário é o “seu” dia, é a data em que você se sente especial, em que quer ter junto de si as pessoas que mais gosta, são as 24 horas mais significativas do ano para você. Eu sei da importância de mandar ao menos um simples “Feliz Aniversário!” para meus amigos mais próximos e, por ter medo de esquecer devido aos afazeres do dia a dia (mesmo sabendo de cor a data dos aniversários de todos eles), sempre marco, todo ano, na minha agenda, as datas dos aniversários de todos, para que eu não esqueça mesmo. Hoje em dia, com o Facebook, nem é preciso anotar na agenda. Basta se conectar nessa rede social todos os dias (o que já fazemos) e verificar quem está fazendo aniversário.

Se é o dia mais importante para a pessoa, a data em que eu posso lhe falar o quanto gosto dela, o quão especial ela é em minha vida, como eu gosto de conviver com ela, compartilhar ótimos momentos de risadas, mas também deixar claro que estou à disposição para os momentos de adversidades, o que me custa reservar cinco minutos do meu dia para entrar em contato com a pessoa?

Assim como o dia do aniversário é a data mais importante para uma pessoa, o nome de alguém é a palavra mais significativa para este indivíduo. Como ressalta Dale Carnegie, em seu livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas”: “Lembre-se de que o nome de uma pessoa é para ela o som mais doce e mais importante que existe em qualquer idioma”. Claro que aqui, quando se fala em “nome”, deve-se entender o jeito como a pessoa gosta de ser chamada, seja o seu nome de batismo, o seu sobrenome, um apelido, uma abreviação do nome, etc.

No entanto, como o autor afirma, a maior parte das pessoas não dá muita importância para o nome dos outros (mas, ao mesmo tempo, ninguém gosta de que errem o seu nome ou o confundam): “A maioria das pessoas se esquece dos nomes pela simples razão de não dedicar a esse exercício o tempo e a energia necessários para concentrar, repetir e gravar indelevelmente os nomes na memória. Quase todos dão a desculpa de que são muito ocupados”.

Uma dica simples para não se esquecer do nome de uma pessoa é repeti-lo pelo menos três vezes assim que você conhecer a pessoa. Então, por exemplo, se você acabou de entrar em contato com alguém que se chama “Marlene”, repita o nome dela enquanto estiver conversando: “Mas então, MARLENE, você já tinha estado por aqui?”; “Me diz uma coisa, MARLENE, você conhece o local onde vai ser o show?”; “Então está bem, MARLENE, nos encontramos depois”; “Tchau, MARLENE, até mais!”. Pronto, repetindo o nome da pessoa você vai memorizá-lo mais facilmente. Outra dica é escrever o nome do sujeito que você acabou de conhecer em um pedaço de papel logo depois do encontro: ao escrever, e não simplesmente repetir, seu cérebro tende a memorizar melhor a palavra.

“Devemos atentar para a mágica que existe num nome e compreender que esse singular elemento pertence exclusivamente à pessoa com quem estamos lidando... e a ninguém mais. O nome destaca a singularidade do indivíduo, tornando-o único entre a multidão. A informação que comunicamos e a solicitação que fazemos em determinada situação assumem uma importância especial quando mantemos vivo em nossa mente o nome do indivíduo. Da garçonete ao diretor, o nome exercerá um efeito mágico enquanto lidamos com as pessoas”.

Podem reparar em suas vidas que, de fato, faz diferença quando alguém sabe o seu nome. Fiquei surpreso a última vez que cheguei à agência do banco no qual possuo uma conta (ia reclamar de um serviço) quando percebi que o gerente se lembrava do meu nome (e ele lembrava mesmo, porque eu não lhe tinha dado nenhum documento naquele dia e fazia algum tempo que não ia até à agência). Você sempre se sente mais importante na aula daquele professor que lhe chama pelo nome...

Todos gostam de ser lembrados. Todos gostam de se sentir especiais e únicos. Mas será que todos fazemos isso com os outros? Ou só queremos que façam com a gente? Será que custa tanto assim se esforçar um pouco mais? Ligue para o seu amigo no aniversário dele. Se não puder ligar, mande uma mensagem. Mas se lembre dele no dia que é a data mais importante para ele. Esforce-se ao menos. E se esforce também para chamar as pessoas pelos respectivos nomes; elas vão se sentir especiais, diferenciadas, e ficarão, com certeza, mais felizes com você do que antes.

Portanto, no dia do aniversário da Maria, do João, da Roberta ou do Antônio, programe-se para ao menos lhe desejar “Feliz Aniversário, querido(a) amigo(a) Maria/João/Roberta/Antônio!!”.



Sugestão de leitura:
Capítulo 3 da Parte II do livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

A estratégia de construção de um inimigo comum





Os Estados Unidos da América se utilizam, desde a época da Guerra da Fria, em sua política externa, da estratégia de possuírem um inimigo externo. Conforme escreve Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos, “um inimigo externo ameaçando os EUA, não deixava de ser conveniente para governos americanos que haviam concluído, corretamente, que seu país era agora uma potência mundial”. Com o fim da União Soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, os Estados Unidos se viram na necessidade de “encontrar” outro inimigo externo. Segundo Fred Halliday, em artigo publicado na revista Contexto Internacional, em 1994, o islamismo seria o inimigo da vez; essa ideia foi reforçada após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Não é só no âmbito internacional, da política externa, que se recorre à criação de um inimigo comum; verifica-se o mesmo na esfera nacional. Os evangélicos fundamentalistas, por exemplo, como afirma Magali Cunha¹, vêm historicamente se utilizando desse artifício: “Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja Católica Romana sempre foi identificada como tal e sempre foi combatida no campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos grupos pentecostais”.

Como no caso dos Estados Unidos, o inimigo criado pelos evangélicos fundamentalistas também se modificou ao longo do tempo e hoje, certamente, conforme afirma Magali Cunha, são os homossexuais. A fim de se verificar essa constatação, basta olhar para os discursos do pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara Federal. Presidente, aliás, cujo primeiro projeto proposto foi sobre a autorização para que a “cura gay” possa ser feita por parte dos psicólogos (que, caso seja aprovado, será um retrocesso de, pelo menos, 30 anos na história da Psicologia). Além disso, pode-se verificar que os evangélicos fundamentalistas elegeram os homossexuais como o maior inimigo atual ao ter acesso às declarações de outro pastor muito conhecido dos brasileiros: Silas Malafaia. Por fim, para ficar com um último exemplo, bem recente: ontem foi divulgado que a Frente Evangélica, que reúne os evangélicos do Congresso Nacional, está discutindo uma medida contra o ato do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que aprovou, também ontem, resolução obrigando todos os cartórios do Brasil a celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (a união estável, vale lembrar, já era garantida desde a manifestação favorável em maio de 2011, pelo Supremo Tribunal Federal).

A pergunta que resta, então, tanto no caso da política externa norte-americana, como na atitude dos evangélicos fundamentalistas no Brasil, é: por que se cria, constrói-se, elege-se, um inimigo comum àquele grupo?

Trata-se de uma questão identitária. Não existe recurso mais favorável para dar coesão a um grupo, para uni-lo, do que um inimigo comum, algo/alguém a ser combatido, perseguido. Nos casos mencionados, a criação do um inimigo é baseada em construções sociais feitas ao longo do tempo (“a homossexualidade é errada, é coisa do Diabo”) ou em generalizações perigosas (“todos os islâmicos são terroristas e querem acabar com os Estados Unidos da América”). Mas o fato é que esse inimigo imaginado confere força ao grupo, uma vez que dá a ele coesão, isto é, os indivíduos daquele grupo passam a pensar, em sua maioria, da mesma maneira, o que facilita um plano de ação, propostas políticas, etc (como uma guerra, por exemplo, no caso da política externa estadunidense).

Uma identidade sempre precisa de uma alteridade, ou de alteridades, para se constituir. Ou seja, necessitamos dos outros para saber quem somos e quem não somos. Portanto, a identidade sempre se dá em uma interação com a alteridade, o outro, o diferente. Afinal de contas, as identidades não são fechadas, imutáveis, absolutas, permanentes; pelo contrário, elas estão em constante processo de adaptação, de modificação, o que acontece, em especial, justamente devido a esse contato com os outros.

A estratégia de se construir um inimigo comum, entretanto, não entende a identidade em uma relação de interação com a alteridade, com o diferente, aquele que não é o que eu sou. Essa estratégia considera a alteridade (o diferente) em uma relação de conflito, ou seja, aquele que não é como eu sou (ocidental; heterossexual; etc) é menos, é inferior, é errado aos olhos de Deus e, portanto, deve ser combatido e perseguido.

É importante ressaltar que as identidades podem, sim, levar a conflitos. Entretanto, elas não precisam necessariamente ter esse destino. Pode-se aprender muito com aquele que não é como eu sou, que pensa de uma maneira diferente, age de outro modo, tem outras crenças, veste-se de um jeito diverso do meu ou se relaciona com pessoas com as quais eu não me relaciono.

Mas lidar com a diferença, com as alteridades, é difícil. A diferença incomoda, faz pensar se de fato nossas Verdades são as “verdadeiras”, se a nossa visão de mundo é A visão de mundo. Os seres humanos, no geral, seja individualmente, seja em grupo, tem muita dificuldade em lidar com a diversidade, já que ela exige reflexão, análise e, muitas vezes, a constatação de que se estava equivocado, ou então, ao menos, de que existem outras maneiras possíveis de se fazer determinadas ações ou de se encarar certas realidades. Por isso é que se tenta tornar todos iguais, iguais a MIM, para que EU possa entender, para que faça sentido na MINHA concepção...



¹Magali do Nascimento Cunha é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. O trecho foi retirado de seu artigo “O que se esconde atrás do caso Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos”, disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2013/05/09/o-que-se-esconde-atras-do-caso-marco-feliciano-da-comissao-de-direitos-humanos/

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O biológico e o cultural


Os humanos são seres biológicos e também seres culturais. Isso pode, em um primeiro momento, parecer uma constatação básica, primária, banal. No entanto, é por não se ter total clareza acerca dessa dupla caracterização do que é o humano que muitos fenômenos são visto como anormais, ridículos ou “bárbaros”. Se todos os homens são seres biológicos, ou orgânicos, e precisam comer, dormir, respirar, isto é, possuem funções vitais, por que os hábitos entre diferentes grupos sociais são tão diversos uns dos outros?

A resposta está justamente no fato de que os humanos são também culturais, além de seres biológicos, como explica o antropólogo Roque Laraia: “Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos primatas, depende muito de seu equipamento biológico. Para se manter vivo, independente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respiração, a atividade sexual etc. Mas, embora estas funções sejam comuns a toda a humanidade, a maneira de satisfazê-la varia de uma cultura para outra. É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural”.

Alimentar-se, por exemplo, é uma necessidade biológica que todos os seres humanos, de todos os lugares do planeta, possuem. Entretanto, o que se come e a maneira pela qual se alimenta são características culturais e, portanto, específicas para cada grupo humano. As rãs são consideradas iguarias na França, mas parece ser grande absurdo para um brasileiro comer esse anfíbio. A carne de vaca, imprescindível nos churrascos brasileiros, é proibida aos hindus. Do mesmo modo, a carne de porco não é permitida a alguns povos por questões religiosas.

A maneira pela qual se alimenta também é variável de localidade para localidade. Se os brasileiros normalmente se utilizam de garfo e faca, aos japoneses é mais comum o uso de palitos (hashi). E outras sociedades preferem utilizar as próprias mãos para se alimentar. Além disso, o ato de comer pode ser público para algumas culturas, ou uma atividade privada para outras. Um arroto após a refeição pode ser entendido como um sinal de que a comida estava boa ou, em outro contexto cultural, ser um sinal de má educação.

Dar à luz é um ato biológico e restrito aos seres humanos do sexo feminino. A maneira como se faz o nascimento de um bebê, entretanto, pode variar bastante no que diz respeito à posição em que a mãe se encontra durante esse ato: estamos acostumados a ver a mãe deitada sobre as costas, mas entre algumas tribos indígenas a posição convencional é de cócoras. É possível se pensar, ainda, em partos que acontecem com a mãe estando em pé.

Os exemplos de diferenças culturais são infinitos. Variam as formas como as pessoas comem, como dormem (em camas, em redes, etc), a maneira como têm relações sexuais, as bebidas que tomam, etc. O que deve ser evidenciado, portanto, é que o ser humano, apesar de biológico, é um ser predominantemente cultural, ou seja, o comportamento humano dos sujeitos de uma cultura dependem de um aprendizado social a que eles estão submetidos. 

Por que se faz relevante ressaltar o componente cultural do humano? Ora, que o ser humano é biológico é evidente: todos precisam dormir, comer, beber, descansar. Muitos, entretanto, tentam minimizar os efeitos da cultura na vida dos indivíduos, sobrevalorizando a biologia. Esses indivíduos tendem a ver como “naturais” várias questões que, na verdade, são culturais. E o problema está quando se tende a ver como natural a sua própria prática cultural (como comer carne de vaca, por exemplo, ou usar talheres durante as refeições) e como “anormais”, ridículas ou inferiores as práticas culturais dos outros (por exemplo comer rãs ou utilizar as próprias mãos para se alimentar durante as refeições).

Sabendo, pois, que a partir de uma pequena quantidade de funções vitais, ou seja, biológicas, os seres humanos de diversos grupos desenvolveram maneiras diferentes de satisfazê-las, criando suas próprias culturas, torna-se evidente que a maioria das práticas humanas são sociais, isto é, são aprendidas durante o processo de socialização (que começa na família, continua na escola, etc). Tendo essa premissa em mente, não faz sentido considerar todas as práticas que são diferentes das nossas como sendo “bárbaras”, inferiores ou ridículas.

Somos todos seres biológicos. Mas somos seres biológicos que produzimos cultura, sendo também, portanto, seres culturais.



Sugestão de leitura:
- Livro “Cultura: um conceito antropológico”, de Roque de Barros Laraia.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A Vida de Mana Lou - número 1 (15/01/2010)


Ela acorda, todos os dias, às 4 horas da manhã. “Ah, essa vida não é fácil, não”. Mas, pelo menos, ela ganhava bem. O dia anterior havia sido o quinto dia útil, então ela resolveu dar uma olhada, através da internet, para confirmar se o salário já estava em sua conta. Alguns minutos depois, a sua grande decepção: “Não acredito! Canalhas! Faço hora extra todos os dias e não recebo por isto. E, além de tudo, ainda não recebi o aumento que faz três meses que eles me prometeram! Que droga de vida, continuar ganhando míseros 15 mil reais!

Num estresse total, arrumou-se e se dirigiu até o serviço, uma vez que às sete e meia já tinha que estar totalmente pronta, no estúdio. Ela entrava no ar diariamente (exceto aos domingos) às oito horas da manhã. Mas, para que tudo ficasse pronto a tempo, a jornalista, que era também editora e âncora do telejornal, tinha que chegar ao serviço às 5 horas da manhã. “Só mesmo muita maquiagem pra dar uma escondida nestas olheiras”.

Notícias do dia: final de semana será de chuva (“Meu São Pedro, será que não vai parar de chover mais este ano?”), presos fazem rebelião em uma penitenciária, quatro agentes são reféns (“Novidade! Todo ano isso acontece mesmo...”); fora estas notícias, só da Haiti, Haiti e mais Haiti (“Bom, pelo menos a tragédia é grande, e nós fomos os primeiros a mandar correspondentes internacionais, então a audiência de hoje será alta”).

Antes de entrar ao estúdio, a jornalista havia ligado na garagem de carros. “Ninguém atende. Fechada, ainda? Mas já são cinco horas da manhã! Será que este povo não trabalha, não?!”. Seu sentimento era ruim. Ela sabia que, sem o desejado e prometido aumento salarial, não poderia comprar seu sonho de consumo dos últimos dois meses: uma Mitsubishi Pajero zero quilômetros. “O jeito vai ser continuar andando neste carro modelo 2008 mesmo!

Telejornal no ar, ela começa a enfrentar os 45 minutos mais estressantes do seu dia. Sendo âncora, ela tinha que estar sempre cuidadosamente impecável, tomar cuidado com as palavras e com a dicção, para que nenhuma gafe fosse cometida, prestar atenção em qual câmera deveria focar para dar a notícia. “Ah, e é claro, não demonstrar a menor reação, fosse a notícia que fosse”. Isso, entretanto, ela não havia aprendido nos seus anos de universitária, na Pontifícia Universidade Católica. “Este é o meu diferencial. Minha maneira de apresentar”.

“Bom dia. Já estamos no ar com os destaques do dia 15 de janeiro de 2010, o dia em que o corpo da médica Zilda Arns será velado, em Curitiba, após ser trazido do Haiti, onde, durante o terremoto que assolou o país, a fundadora da Pastoral da Criança faleceu. E, além disto: ONU afirma que 300 mil haitianos estão desabrigados e cerca de 10% da capital Porto Príncipe está destruída; catorze militares brasileiros mortos no Haiti, outros quatro continuam desaparecidos; final de semana será de mais chuva; presos se rebelam no Paraná e fazem quatro agentes penitenciários como reféns!”

Só desgraça. Que beleza! Audiência lá em cima hoje. Ainda bem que o que aconteceu no Haiti foi esta semana, porque se fosse semana passada ia coincidir com as tragédias de desabamento, e esta semana não teríamos novidades. Como o povo esquece rápido das notícias. Ninguém se lembra mais da tragédia brasileira. Certo estava meu professor Antônio que nos alertava que quanto maior a desgraça, quanto mais fotos chocantes e declarações emotivas, maior a audiência. Pena que, no meu caso, esta maior audiência não implica em um maior salário. Ah, mais deixa a edição terminal, que meu chefe vai é escutar. É um absurdo!

Intervalo comercial. A jornalista saca seu celular e o liga (celulares tinham que ficar desligados enquanto o telejornal estivesse no ar). “Puta merda, agora já são oito e dez. Será que a concessionária não vai abrir? Alô. Ah, oi. Finalmente. Bom, eu quero saber quanto está custando a Mitsubishi Pajero. Quê? Tudo isto? Você tá é louco! Não, o pagamento não vai ser a vista. Mas como assim não tem desconto então? Eu quero dividir em seis vezes só. Hoje em dia vocês dividem em até 60 meses!” Ela desliga o celular. A contagem regressiva de cinco segundos termina e ela volta ao ar.

É, esta vida não é mole não. Vou ter que continuar com este celularzinho mesmo, que até o padeiro da esquina já tem, e com meu carro 2008 por mais uns meses. Ah, e vou ter que continuar dando estas notícias, né, fazer o quê? Pouco me importa o que eles estão mandando ou não pro Haiti. Não quero saber se são 100 ou 200 mil mortos. Por que estes idiotas gostam tanto de saber da vida dos outros? Ahh, se pelo menos eu tivesse ganhado na mega-sena da virada. Estaria é bem longe daqui, de carro zero, celular novo, tomando um solzinho em alguma ilha grega. Ah, vida...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Curta


Mamãe,

Estou morrendo de saudade!!
Meu apartamento está precisando de uma boa faxina...
Quando você vem para cá?
Te amo!

Filhinho querido

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sobre o conceito de família



Muitos são os que, atualmente, afirmam que se está acabando com o conceito do que é uma família. Várias dessas vozes vêm, obviamente, de indivíduos (fundamentalistas ou não) ligados a diversas religiões, como as evangélicas, a católica, etc; outros sujeitos, entretanto, não estão ligados à religião, mas também possuem um pensamento conservador.

Em ambos os casos, o que está em jogo é uma não aceitação das novas formas de famílias que se constituem na contemporaneidade (ainda que essas novas maneiras de constituição familiar não sejam assim tão recentes, na verdade). Nesse sentido, o alvo central das críticas tem sido, ao menos no Brasil, o movimento LGBT. Mas, se o alvo é, de certa maneira, novo, a resistência conservadora é bem antiga: antes dos gays e lésbicas, as feministas sofreram exatamente as mesmas acusações.

A base do argumento conservador é que a família deve ser constituída por um pai, uma mãe e os filhos. E só esse modelo/padrão pode ser considerado família. Assim, o “agrupamento” (já que não pode, de acordo com esse ponto de vista, ser denominado família) formado por dois pais e seus filhos, ou duas mães e seus filhos não se encaixa nesse conceito, não deveria existir, já que não corresponde à fórmula [pai + mãe + filhos].

O que está em jogo, então, é a manutenção da tradição familiar de origem cristã, já que somente um homem e uma mulher, juntos (e que devem permanecem sempre juntos), podem ter descendentes biológicos. Não se leva em consideração, por exemplo, que o bem-estar dos filhos, no contexto familiar, é mais importante do que o fato de como é constituída a família e que, conforme a imagem acima ilustra, “o que faz uma família é o amor”.

É o esquecimento (muitas vezes intencional) de que a cultura é dinâmica, isto é, de que “cada sistema cultural está sempre em mudança”, como afirma o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia, que sustenta a visão conservadora. Ora, é óbvio e fácil de se constatar que a cultura de uma sociedade está, sempre, em constante mudança. Do mesmo modo, os conceitos (como o de família) variam de acordo com o tempo em uma sociedade.

Por que a mudança ocorre? Essencialmente porque os homens, ao contrário dos outros animais, “têm a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los”, conforme escreve Laraia. Seja qual for o motivo – ou melhor, os motivos – das mudanças, o fato é que ela ocorre, sempre, na sociedade humana. Vejamos, então, alguns exemplos.

Os modos de se vestir foram sempre os mesmo no Brasil? É claro que não. Aliás, eles variam inclusive de região para região. Se antes o traje habitual de um homem em um baile era o terno, hoje o comum é que os jovens estejam de jeans e camiseta nas boates. Se já houve uma época em que as meninas eram obrigadas a ir aos colégios com meia calça, independente da estação do ano, hoje em dia elas agradecem por poderem usar shorts e saias nas escolas.

Até mesmo a forma de designar o mundo, isto é, a nossa relação com a linguagem, se altera de acordo com o tempo. Ninguém mais utiliza “vosmecê” para se referir a outra pessoa, e sim “você”, ou, ainda, somente  “cê” na linguagem oral. Se na geração passada o mais comum era dizer “vou à discoteca”, a atual prefere utilizar “vou à boate”, ou, então “vou pra balada”.

Os padrões de beleza também se modificam, de maneira mais lenta ou mais rápida, mas se alteram. Em épocas passadas o padrão de beleza feminino já foi o que hoje poderia se denominar como “as gordinhas”, e não as moças macérrimas, como atualmente (basta olhar para as top models). No que diz respeito aos homens, nem sempre o padrão de beleza foi o sujeito extremante forte e com todos os músculos do corpo bem definidos, como recentemente.

Era impensável, algumas décadas atrás, um casal de namorados se beijar na rua, ou seja, em público, ainda mais se fosse durante o dia. E não havia namoro se o homem não fosse até a casa da moça pedir a permissão dos pais para que pudesse ter um relacionamento sério e oficial com ela.

Outro exemplo, este trazido pelo próprio Roque Laraia, em seu livro Cultura: um conceito antropológico, é que hoje em dia uma jovem mulher pode fumar em público sem que a sua reputação seja denegrida. Se atualmente isso é possível, entretanto, é porque muitas outras mulheres, antes, aguentaram recriminações, zombarias, etc.

Portanto, como afirma esse antropólogo: “as mudanças de costumes são bastante comuns. Entretanto, elas não ocorrem com a tranquilidade que descrevemos. Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades humanas são palco de embate entre as tendências conservadoras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e pretendem substituí-los por novos procedimentos”.

Voltando à temática central, do conceito de família, ele próprio já sofreu alterações ao decorrer do tempo. Devido à separação conjugal, por exemplo, podem surgir “duas famílias: a que o sujeito tinha antes (com a ex-mulher) e a atual (com a segunda esposa). Ora, a maior parte da sociedade considera como família a primeira, ainda que os filhos tenham ficado morando somente com a mãe, por exemplo. Do mesmo modo, considera-se uma família aquele novo agrupamento formado pelo homem divorciado com outra mulher (que, às vezes, pode ser ela também divorciada e com filhos do casamento anterior).

Dito tudo isso, fica evidente que os conceitos, assim como os próprios hábitos, costumes, tradições dos indivíduos de uma sociedade estão em constante mudança (ainda que esta seja, muitas vezes, lenta). Portanto, não se trata de considerar que: 

[pai + mãe + filhos] = família

E que qualquer outra forma de agrupamento não possa ser considerada como tal. Pode-se, dizer, sim, que em certa época o entendimento do que se tinha por “família” era esse, mas não que, por isso, o conceito de família não deva ser ampliado, modificado, alterado. Assim, ampliar o conceito não é acabar com a família tradicional, mas aceitar que outras formas de família, que não a tradicional, também devem ter o status de família.

A ampliação de conceitos não é algo recente na história da humanidade. Basta analisar, como exemplo, o conceito de “cidadão”. Se pensarmos na época da Grécia antiga, cidadão era aquele que votava e só quem estava apto a fazer isso eram os homens livres e nativos, ou seja, as mulheres, os escravos e os estrangeiros não eram cidadãos. Obviamente, o conceito de cidadão se alterou, mas isso não se deu de uma maneira pacífica e “natural”, mas sim devido, por exemplo, a todas as lutas de negros em busca de seus direitos políticos e do movimento feminista em busca, entre outros objetivos, do direito ao voto. Se hoje consideramos homens, mulheres, brancos, negros, todos como cidadãos, é importante voltar à História para ter conhecimento de que nem sempre isso foi assim.

Não é necessário ser feminista, gay ou lésbica para defender que existem múltiplas formas de se constituir uma família. Basta estar de olhos atentos à nossa sociedade para se constatar que a realidade já é essa, que não se pode mais considerar somente uma concepção do que é família, afinal de contas, as tradições mudam, a cultura é dinâmica e, portanto, os conceitos também são alterados e ampliados.



Sugestão de leitura:
- Livro “Cultura: um conceito antropológico”, de Roque de Barros Laraia, em especial o último capítulo, intitulado “A cultura é dinâmica”.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma pitada de cultura erudita: Heitor Villa-Lobos





Sempre com seus charutos, Heitor Villa-Lobos, que viveu 72 anos, é considerado um dos compositores mais importantes do Brasil, principalmente por seu caráter inovador, vanguardista. Ele teve a coragem de criar uma música clássica genuinamente brasileira e de passar para a partitura músicas populares e folclóricas do Brasil. Fez isso em uma época em que só os grandes clássicos eram bem aceitos pela elite/frequentadores dos concertos (a esses Villa-Lobos chamava de "público", diferenciando-os do "povo" e ainda da "massa", como se pode ver no filme “Villa-Lobos – Uma Vida de Paixão”, do diretor Zelito Viana).

“Ele não se media pela régua europeia, como faziam desde o século XIX os compositores das Américas”, escreveu Roberto Minczuk sobre Heitor Villa-Lobos, na coleção Grandes Compositores da Música Clássica, da Abril editoras.

Há dois episódios da vida de Villa que são bem interessantes. O primeiro é sobre a lenda de que ele “viajou pela Amazônia, navegou pelo rio Amazonas, naufragou, foi feito prisioneiro pelos índios, que só o soltaram depois que ele lhes mostrou algumas gravações de suas músicas”. Trata-se puramente de lenda segundo Minczuk. Mas o magnífico é que, desta aventura, mesmo que onírica, resultou a sensacional música “A dança do índio branco”.

O outro episódio é sobre sua participação na Semana de Arte Moderna. Nas três vezes em que subiu ao palco na Semana, Villa-Lobos vestia black-tie, sapato social em um dos pés e chinelo no outro. Usava, ainda, um guarda-chuva, que lhe servia de bengala. O público interpretou seu modo de estar vestido como uma atitude de desrespeito, vaiando-o impiedosamente. Entretanto, mais tarde o compositor explicou que estava de chinelo em um dos pés simplesmente por estar com feridas nele, sendo necessário, devido a isso, o uso de um calçado aberto.

Villa-Lobos fez um projeto de educação musical, um sonho seu, que foi realizado durante o Estado-Novo de Getúlio Vargas. O ápice desse projeto foi a reunião de um coral com 40 mil vozes em um estádio de futebol do Rio de Janeiro. Além disso, enquanto ocupou o cargo de diretor do Serviço Técnico e Administrativo de Música e Canto Orfeônico, a partir de 1932, formou muitos professores de canto, para que esses despertassem nas crianças o gosto pela boa música.

Entre suas músicas mais famosas estão as “Bachianas” e os “Choros”. Villa considerava Johann Sebastian Bach como a fonte universal da música, assim, criou uma série de nove obras estabelecendo paralelos entre o compositor do século XVIII e a música brasileira, que são denominadas “Bachianas Brasileiras”.  Já os “choros” que o compositor escreveu constituem suas obras mais atrevidas e geniais – datam dos anos 1920 –, já que exploram várias formações vocais e instrumentais.

Dentre suas músicas, as que todos devem ouvir ao menos uma vez para sentir seu estilo, são:
- Dança do Índio Branco;
- O Trenzinho do Caipira (Toccata da Bachiana Brasileira número 2);
- Ária (Cantilena), da Bachiana Brasileira número 5;
- Choro número 5 (“Alma Brasileira“);
- A Valsa da Dor (compôs quando da morte de sua mãe).


Cronologia:
1887 à nasce no Rio de Janeiro
1922 à participa da Semana de Arte Moderna
1930 à elabora um plano de educação musical. Diz-se que ele acreditava que os problemas do Brasil poderiam ser resolvidos se todos conhecessem a música
1932 à nomeado por Vargas supervisor da educação musical
1933 à passa a compor para fins didáticos
1945 à cria a Academia Brasileira de Música e é seu primeiro presidente
1948 à descobre o câncer de próstata
1959 à rege seu último concerto em Nova Iorque em 12 de julho. Morre em novembro.






quarta-feira, 27 de março de 2013

Acasos

       As melhores experiências de nossas vidas acontecem ao acaso, quando simplesmente não planejamos. 

     A viagem inesquecível surge do nada, e quando nos damos conta já estamos nela; a mais verdadeira amizade aparece de súbito e sem nenhuma programação; o livro mais interessante que lemos em nossa vida é aquele que estava guardado no fundo da última gaveta, ou esquecido dentro do guarda-roupas, ou aquele que a atendente nem lembrava mais que havia na livraria; o relacionamento amoroso mais significativo é com aquela pessoa que você simplesmente topa um dia, aquela que se você conhecesse antes provavelmente jamais pensaria em namorar. 

     A vida é assim, feita dos bons momentos de acaso. Talvez seja bom, devido a isso, não planejar como exatamente será tudo, não ter aquela rotina fixa e imutável de sempre. Caso contrário, corremos o risco de encontrar menos acasos, ou ser menos encontrados por eles!

quarta-feira, 20 de março de 2013

“Habemus Papam”. Teremos também mudanças?



     Não se pode negar que o Vaticano, especialmente nas últimas semanas, tem agitado a mídia internacional com grandes “surpresas”, fatos inéditos. Primeiro, o famoso caso de vazamento de arquivos confidencias, mais conhecido como “Vatileaks”. Não muito tempo depois e, provavelmente, tendo essa primeira surpresa como um dos motivos, a não esperada renúncia do então papa Bento XVI deixou a todos, inclusive muitos indivíduos importantes na hierarquia da própria Igreja Católica, de boca aberta. Por fim, a eleição de um novo papa, argentino – em um conclave que foi mais rápido do que se esperava –, e que não era um dos favoritos ao cargo, caracteriza a mais nova “surpresa” que o Vaticano apresentou ao mundo.

     Bento XVI enfrentou, durante o seu papado, vários escândalos além do “Vatileaks”. Muitos casos de pedofilia envolvendo a omissão de altos representantes do “reino de Deus na Terra”; mal-entendidos com outras religiões; disputas internas de poder dentro do Vaticano; e também uma série de questões envolvendo o agora famoso “Banco do Vaticano”, que, na verdade, chama-se IOR (Instituto para Obras da Religião). Depois de tudo isso, ah, e é claro, também por questões de saúde, Joseph Ratzinger, que virou Papa Bento XVI em 2005, resolveu renunciar ao mais importante cargo da Igreja Católica Apostólica Romana, transformando-se no Papa emérito Bento XVI.

     Ao que tudo indicava, o novo papa seria ou o italiano Angelo Scola ou o brasileiro Odílio Scherer. Mas, inusitadamente, ao menos para os simples mortais que não estavam trancados na Capela Sistina, eis que o eleito foi o argentino Jorge Mario Bergoglio, até então um nome pouco conhecido e que agora atenderá pela denominação de Papa Francisco.  Por que foi nele em que os cardeais, inspirados pelo Espírito Santo, votaram?

     Jorge Bergoglio é considerado, por muitos, como sendo um conservador. Ele é acusado de ter tido certa “simpatia” com a ditatura na Argentina, ou, ao menos, de não ter se mobilizado contra os ditadores, como fizeram outros líderes religiosos em diversos países que também sofreram ditadura política. Mas já era esperado que o novo papa não seria europeu. Especulava-se acerca de algum brasileiro, ou um africano, ou, talvez, um canadense. Entretanto, se o papa provavelmente não seria mesmo europeu, e o Brasil é o país “mais católico do mundo”, por que não se escolher um papa brasileiro? Uma possível resposta a essa pergunta está na filiação religiosa do argentino Jorge Bergoglio dentro da Igreja Católica: ele é um jesuíta, e os jesuítas (são assim chamados os membros da Companhia de Jesus, uma das maiores ordens – vertentes – dentro do catolicismo) têm como principal objetivo o trabalho missionário e educacional, isto é, a evangelização e difusão dos conhecimentos católicos.

     Depois de tantos escândalos, a Igreja é vista com olhos ainda mais desconfiados, atentos, do que antes, e, com isso, perde cada vez mais fiéis. A escolha de um papa jesuíta e latino-americano vem tentar reverter esse quadro crítico que a instituição católica vem enfrentando nas últimas décadas e, em especial, nos últimos anos. Para se ter uma ideia, no Brasil aproximadamente 79% das pessoas se consideram católicas, mas só 45% são praticantes, isto é, frequentam de maneira sistemática as missas, pagam os dízimos, etc. Em Portugal, 90% da população se declara católica, mas só 27% é praticante, de fato, do catolicismo.

     Assim, uma Igreja que seja mais “próxima” dos fiéis, que esteja voltada para os pobres, que seja, de certo modo, mais “latina”, é a esperança do Vaticano. A própria escolha da denominação “Francisco” que o novo papa escolheu remete a essa ideia, já que São Francisco de Assis é conhecido por ser o sujeito que renunciou à sua riqueza, aos bens materiais, para viver na pobreza e em dedicação aos pobres.

     Na América Latina a Igreja vem perdendo muitos e muitos fiéis para as instituições religiosas evangélicas, e isso, obviamente, além de uma perda de poder é, também, uma grande perda de dinheiro. Se os dízimos vão para os evangélicos, e não para os católicos, mais dinheiro, mais poder e, portanto, maior influência, terão os evangélicos, e não o Vaticano.

    O cenário na Europa também é interessante de ser observado. A crise econômica que assola o continente já há alguns anos e que parece não ter uma solução clara a curto prazo – fazendo com que europeus e mais europeus se tornem a cada dia mais pobres financeiramente – não é apenas uma crise econômica. Trata-se de uma crise de valores: está em jogo o que é “ser europeu”. Em momentos de crise as pessoas tendem a se tornar mais religiosas, a se lembrar de que Deus existe. Oras, é também pensando nisso, e com o medo de que o “Deus” buscado não seja mais O Deus católico, que a Igreja, também na Europa, precisa ficar mais próxima da população, dos sofredores, dos pobres.

    De fato, o novo papa vem já demonstrando essa “aproximação” com os fiéis. Ele mesmo foi pagar a conta de seu hotel; desce do carro para beijar seus admiradores e para conversar com eles; dispensa os seguranças, etc. A simplicidade parece ser uma característica de sua personalidade. Na Argentina, Bergoglio costumava utilizar transporte público, cozinhava sua própria comida, morava em uma acomodação simples. A “aproximação” pode ser associada, portanto, a essa simplicidade do Papa Francisco. E essa simplicidade também contém uma forte crítica ao seu antecessor, Bento XVI. As vestimentas do novo papa são mais modestas: ele não usa sapatos vermelhos Prada, mas sim simples sapatos pretos; o crucifixo é o mesmo que ele já usava, feito de aço, e não de ouro; e o famoso anel papal será de prata, e não de ouro, como é o costume.

     Não devemos, entretanto, santificar o papa recém-eleito (até porque muitas das questões envolvendo o seu passado, como a relação com a ditadura na Argentina, ainda irão, provavelmente, vir à tona). Ele terá importantes questões a resolver, sendo que uma das mais relevantes é como lidar com a pedofilia na Igreja Católica. Além disso, como irá solucionar as brigas internas de poder no Vaticano, que tanto desgastaram o seu antecessor?

     Mudanças, reformas, certamente serão feitas. Mas não apostem que o Papa Francisco fará uma revolução no catolicismo. Não esperem que a Igreja, através desse novo líder, passe a ver com bons olhos os relacionamentos homoafetivos, que “liberem” o aborto para as cristãs católicas apostólicas romanas, que incentive o uso da camisinha, como alguns entusiastas mais ingênuos já estão pensando. Seria demais! Isso configuraria uma perda de poder muito grande em termos históricos e religiosos. Seria aceitar que a Instituição Igreja Católica estava equivocada em vários pontos, a fim de manter seus dogmas conservados. Essa revolução muito provavelmente traria inúmeros fiéis de volta para as igrejas, ou mesmo faria surgir novos fiéis católicos, mas dificilmente ela será feita.

     O Vaticano está preocupado com a repercussão dos casos de pedofilia, com as brigas internas de poder, com suas próprias finanças, uma vez que menos fiéis se traduz em menos dízimo e, portanto, em menos dinheiro. A preocupação é com o desprestígio mundial que a instituição encara na atualidade. O Vaticano não está preocupado com o amor entre os homossexuais e nem com a saúde e “segurança” sexuais no mundo.

     A Igreja continuará conservadora. 


domingo, 17 de março de 2013

Boa noite a todos e a todas!

Sejam muito bem-vindos ao Coisificações.blogspot.com! A partir de agora, todas as semanas (provavelmente às quartas-feiras) um texto inédito para você, sobre os mais diversos temas: cotidiano, esporte, Brasil, cultura, religião, exterior, televisão, entre muitos outros, além, é claro, de alguns textos literários também. Todas as publicações são de autoria de Vítor Lopes, um estudante universitário da área de Humanas.

Comentários, críticas e sugestões são sempre muito bem recebidos por aqui.

Não percam, nesta quarta, a publicação do primeiro texto. Ótima semana a todos e a todas!