Muitos
são os que, atualmente, afirmam que se está acabando com o conceito do que é uma família. Várias dessas vozes vêm, obviamente, de indivíduos
(fundamentalistas ou não) ligados a diversas religiões, como as evangélicas, a católica,
etc; outros sujeitos, entretanto, não estão ligados à religião, mas também possuem
um pensamento conservador.
Em
ambos os casos, o que está em jogo é uma não aceitação das novas formas de
famílias que se constituem na contemporaneidade (ainda que essas novas maneiras
de constituição familiar não sejam assim tão recentes, na verdade). Nesse sentido,
o alvo central das críticas tem sido, ao menos no Brasil, o movimento LGBT.
Mas, se o alvo é, de certa maneira, novo, a resistência conservadora é bem
antiga: antes dos gays e lésbicas, as feministas sofreram exatamente as mesmas acusações.
A
base do argumento conservador é que a família deve ser constituída por um pai,
uma mãe e os filhos. E só esse modelo/padrão pode ser considerado família.
Assim, o “agrupamento” (já que não pode, de acordo com esse ponto de vista, ser
denominado família) formado por dois pais e seus filhos, ou duas mães e seus
filhos não se encaixa nesse conceito, não deveria existir, já que não
corresponde à fórmula [pai + mãe + filhos].
O
que está em jogo, então, é a manutenção da tradição familiar de origem cristã,
já que somente um homem e uma mulher, juntos (e que devem permanecem sempre
juntos), podem ter descendentes biológicos. Não se leva em consideração, por
exemplo, que o bem-estar dos filhos, no contexto familiar, é mais importante do
que o fato de como é constituída a família e que, conforme a imagem acima
ilustra, “o que faz uma família é o amor”.
É
o esquecimento (muitas vezes intencional) de que a cultura é dinâmica, isto é,
de que “cada sistema cultural está sempre em mudança”, como afirma o
antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia, que sustenta a visão conservadora.
Ora, é óbvio e fácil de se constatar que a cultura de uma sociedade está,
sempre, em constante mudança. Do mesmo modo, os conceitos (como o de família)
variam de acordo com o tempo em uma sociedade.
Por
que a mudança ocorre? Essencialmente porque os homens, ao contrário dos outros
animais, “têm a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los”,
conforme escreve Laraia. Seja qual for o motivo – ou melhor, os motivos – das
mudanças, o fato é que ela ocorre, sempre, na sociedade humana. Vejamos, então,
alguns exemplos.
Os
modos de se vestir foram sempre os mesmo no Brasil? É claro que não. Aliás,
eles variam inclusive de região para região. Se antes o traje habitual de um
homem em um baile era o terno, hoje o comum é que os jovens estejam de jeans e
camiseta nas boates. Se já houve uma época em que as meninas eram obrigadas a
ir aos colégios com meia calça, independente da estação do ano, hoje em dia
elas agradecem por poderem usar shorts e saias nas escolas.
Até
mesmo a forma de designar o mundo, isto é, a nossa relação com a linguagem, se
altera de acordo com o tempo. Ninguém mais utiliza “vosmecê” para se referir a
outra pessoa, e sim “você”, ou, ainda, somente “cê” na linguagem oral. Se na
geração passada o mais comum era dizer “vou à discoteca”, a atual prefere
utilizar “vou à boate”, ou, então “vou pra balada”.
Os
padrões de beleza também se modificam, de maneira mais lenta ou mais rápida,
mas se alteram. Em épocas passadas o padrão de beleza feminino já foi o que
hoje poderia se denominar como “as gordinhas”, e não as moças macérrimas, como
atualmente (basta olhar para as top models). No que diz respeito aos homens,
nem sempre o padrão de beleza foi o sujeito extremante forte e com todos os
músculos do corpo bem definidos, como recentemente.
Era
impensável, algumas décadas atrás, um casal de namorados se beijar na rua, ou
seja, em público, ainda mais se fosse durante o dia. E não havia namoro se o homem
não fosse até a casa da moça pedir a permissão dos pais para que pudesse ter um
relacionamento sério e oficial com ela.
Outro
exemplo, este trazido pelo próprio Roque Laraia, em seu livro “Cultura: um
conceito antropológico”, é que hoje em dia uma jovem mulher pode fumar em
público sem que a sua reputação seja denegrida. Se atualmente isso é possível,
entretanto, é porque muitas outras mulheres, antes, aguentaram recriminações,
zombarias, etc.
Portanto,
como afirma esse antropólogo: “as mudanças de costumes são bastante comuns.
Entretanto, elas não ocorrem com a tranquilidade que descrevemos. Cada mudança,
por menor que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque
em cada momento as sociedades humanas são palco de embate entre as tendências
conservadoras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter os hábitos
inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem
sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e pretendem substituí-los
por novos procedimentos”.
Voltando
à temática central, do conceito de família, ele próprio já sofreu alterações ao
decorrer do tempo. Devido à separação conjugal, por exemplo, podem surgir “duas” famílias: a que o sujeito tinha antes (com a ex-mulher) e a atual (com a
segunda esposa). Ora, a maior parte da sociedade considera como família a
primeira, ainda que os filhos tenham ficado morando somente com a mãe, por
exemplo. Do mesmo modo, considera-se uma família aquele novo agrupamento
formado pelo homem divorciado com outra mulher (que, às vezes, pode ser ela
também divorciada e com filhos do casamento anterior).
Dito
tudo isso, fica evidente que os conceitos, assim como os próprios hábitos,
costumes, tradições dos indivíduos de uma sociedade estão em constante mudança
(ainda que esta seja, muitas vezes, lenta). Portanto, não se trata de
considerar que:
[pai
+ mãe + filhos] = família
E
que qualquer outra forma de agrupamento não possa ser considerada como tal.
Pode-se, dizer, sim, que em certa época o entendimento do que se tinha por “família”
era esse, mas não que, por isso, o conceito de família não deva ser ampliado,
modificado, alterado. Assim, ampliar o conceito não é acabar com a família
tradicional, mas aceitar que outras formas de família, que não a tradicional,
também devem ter o status de família.
A
ampliação de conceitos não é algo recente na história da humanidade. Basta
analisar, como exemplo, o conceito de “cidadão”. Se pensarmos na época da
Grécia antiga, cidadão era aquele que votava e só quem estava apto a fazer isso
eram os homens livres e nativos, ou seja, as mulheres, os escravos e os
estrangeiros não eram cidadãos. Obviamente, o conceito de cidadão se alterou,
mas isso não se deu de uma maneira pacífica e “natural”, mas sim devido, por
exemplo, a todas as lutas de negros em busca de seus direitos políticos e do
movimento feminista em busca, entre outros objetivos, do direito ao voto. Se
hoje consideramos homens, mulheres, brancos, negros, todos como cidadãos, é
importante voltar à História para ter conhecimento de que nem sempre isso foi
assim.
Não
é necessário ser feminista, gay ou lésbica para defender que existem múltiplas
formas de se constituir uma família. Basta estar de olhos atentos à nossa
sociedade para se constatar que a realidade já é essa, que não se pode mais considerar
somente uma concepção do que é família, afinal de contas, as tradições mudam, a
cultura é dinâmica e, portanto, os conceitos também são alterados e ampliados.
Sugestão
de leitura:
-
Livro “Cultura: um conceito antropológico”, de Roque de Barros Laraia, em
especial o último capítulo, intitulado “A cultura é dinâmica”.